INTERVENÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE CAMPO

 

INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA
BALUARTE DE N. S.ª DA CONCEIÇÃO (BALUARTE DO CAIS)


Intervenção arqueológica realizada no âmbito da construção das futuras instalações da Escola Superior de Hotelaria e de Turismo de Setúbal, da iniciativa do Turismo de Portugal.
Em termos gerais, esta intervenção integra-se no Projecto de Investigação sobre as Preexistências de Setúbal, da responsabilidade do Centro de Estudos Arqueológicos (CEA) do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS). Os trabalhos arqueológicos foram realizados por Susana Duarte, Antónia Coelho-Soares e António Júlio Costa.
Importava testar e recuperar vestígios da utilização militar da estrutura do século XVII e das sucessivas reabilitações, bem como de eventuais evidências de utilização do espaço anteriores à estrutura militar.
Assim, no decorrer dos trabalhos foram desenvolvidas as seguintes acções: realização de doze sondagens arqueológicas com objectivos essencialmente estratigráficos de forma a identificar plenamente as condições de jazida subjacentes e coevas da construção desta estrutura defensiva, e a estabelecer correlações crono-estratigráficas entre as diversas unidades edificadas que a constituem; acompanhamento arqueológico das picagens parietais dos edifícios dos séculos XVII e XVIII; acompanhamento das várias movimentações de sedimentos inerentes à própria demolição dos edifícios recentes e necessárias às novas edificações.

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Fig. 1 - Aspecto dos trabalhos realizados na Sondagem A.

2Fig. 2 - Levantamento topográfico na Sondagem H.

3Fig. 3 - Recolha de amostras de natureza petrográfica da muralha do baluarte.

4Fig. 4 - Registo arqueológico das picagens parietais realizadas nos edifícios a reabilitar.

5Fig. 5 - Perfis norte e oeste da Sondagem E.

6Fig. 6 - Aspecto da estrutura de orientação N-S colocada a descoberto na Sondagem B.

7Fig. 7 - Estruturas identificadas na Sondagem L.

8Fig. 8 - Sondagem D. Aspecto de estrutura de vigia, vista de sul, desactivada e colmatada em finais do século XVII.

 

PRINCIPAIS FASES DE OCUPAÇÃO DO BALUARTE DE N. S.ª DA CONCEIÇÃO

 

A fortificação seiscentista reorganizou o aglomerado urbano do período barroco; passou a defender as três unidades urbanísticas de Setúbal: Vila, cercada pela muralha medieval, e arrabaldes de Troino, a poente, e Palhais, a nascente. A sul, foram construídos, na nova fortificação, três baluartes, de este para oeste: o de Nossa Senhora da Conceição ou Baluarte do Cais, o de Nossa Senhora do Livramento e o de São Braz.

9Fig. 9 - Localização do Baluarte do Cais, assinalada por círculo, em planta da Praça e Vila de Setúbal, levantada em 1805 por Maximiano José da Serra, Coronel do Real Corpo de Engenheiros, desenhada por Caetano José Vaz Parreiras, 2º Tenente do mesmo Corpo, e publicada em 1820. Gabinete dos Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (in Quintas, 2003).

10Fig. 10 - Estracto da gravura da frente ribeirinha de Setúbal, de Pierre Baldi, 1668, onde se podem ver as unidades urbanas que a muralha seiscentista viria a unir: vila (muralhada), Troino e Palhais. Verifica-se também que a construção da 2ª linha de muralhas se iniciou com o Baluarte de Nossa Senhora da Conceição (Baluarte do Cais) o qual assentou sobre uma plataforma pétrea construída para o efeito, como nos revelou a intervenção arqueológica. Gravura do livro “Viagens de Cosme de Médicis por Espanha y Portugal”, 1668-1669.


O Baluarte de Nossa Senhora da Conceição ou Baluarte do Cais, construído no 2º e 3º quartéis do século XVII, sofreu diversas transformações até meados do século XX. Assim, distinguimos neste espaço três grandes fases de construção que passaram pela primitiva função de baluarte, enquanto parte integrante da segunda linha de muralhas que rodeou Setúbal; pela adaptação do espaço abaluartado a aquartelamento militar; pela reestruturação após o sismo de 1755 e por novas edificações resultantes das necessidades inerentes ao funcionamento militar no decorrer dos séculos XIX e XX.

 

Fase I. Construção da fortificação (meados e inícios da segunda metade do século XVII). – A intervenção arqueológica revelou que à primeira fase desta edificação corresponde a construção de uma plataforma de blocos pétreos sobre a qual foi edificada a muralha do baluarte.
Na fase inicial (inícios da segunda metade do século XVII) o baluarte detinha bombardeiras abertas na própria muralha, onde se encaixava a peça de artilharia, com a base em calcário e as paredes laterais internas em tijolo, abrindo o ângulo para o exterior; foram detectadas 17 bombardeiras nos alçados nascente e poente do baluarte.
Em um segundo momento, o baluarte recebeu duas estruturas de vigia adossadas às muralhas este e oeste, sobrelevadas em relação ao alinhamento de bombardeiras do momento inicial.

11Fig. 11 - Aspecto da muralha do baluarte a oeste; vista do exterior; por debaixo do cordão, bombardeira emparedada; por cima, canhoeiras “entaipadas”.

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Fig. 12 - Paramento interior da muralha no lado poente, com uma bombardeira.

 

Fase II. Aquartelamento militar (finais do século XVII). – Com a adaptação do baluarte a aquartelamento militar, em 1696 (reinado de D. Pedro II), foram desactivadas as estruturas de vigia adossadas à muralha e as bombardeiras, preenchidas por blocos irregulares de calcarenito miocénico.
Como aquartelamento militar foi construído o edifício central em “U”, o edifício do paiol – junto à fachada oriental –, a “Casa do Governador” e o Edifício B.
O poder de fogo nesta fase centrava-se no terrapleno do baluarte que ocultou as bombardeiras da fase anterior; estas últimas haviam permitido disparar ao nível da linha de água sobre qualquer ofensiva marítima. As canhoeiras desta segunda fase terão sido destruídas por acção do sismo de 1755. Observe-se o aparelho construtivo do paramento poente do baluarte com as fissuras verticais do abalo sísmico e as remodelações posteriores, no topo da muralha (Fig.12).

13Fig. 13 - Aspecto do Edifício central em “U” correspondente ao primitivo aquartelamento militar.


Com o sismo de 1755, a muralha do baluarte ficou, pois, muito danificada; o aparelho construtivo do troço de muralha oeste, entre a interrupção do cordão e a “Casa do Governador”, corresponde à reedificação deste troço após o sismo de 1755. Junto ao cunhal da “Casa do Governador” pudémos observar restos do troço da muralha original mostrando o cordão, ainda que danificado, e parte de uma bombardeira cortada em cerca de metade da largura pelo cunhal daquele edifício.

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Fig. 14 - Muralha no canto NW do baluarte com vestígios de uma bombardeira cortada pelo edifício da “Casa do Governador”, e porta aberta na muralha no pós sismo de 1755.


Também foram observadas fissuras verticais ao longo do pano da muralha, demonstrando o impacto do abalo sísmico na fortificação. Um dos relatos mais marcantes deste sismo foi deixado pelo padre Manoel Portal: “A Villa de Setubal entre todas foy a que mais padeceo. Quasi a metade da Villa, que he das mayores do Reyno, ficou raza com a terra e tambem para se parecer em tudo nos infortunios com os de Lisboa houve nella fôgo, e o mar derrubou as muralhas, e entrou pela Villa, e pello campo quasi hum quarto de legoa e meteo dentro das ruas os barcos [...] ” (Peres Claro, 1957).
No topo do pano poente da muralha, após a picagem parietal, tornaram-se visíveis as canhoeiras “entaipadas”, recuperadas ou construídas imediatamente após o sismo de 1755 ou já no século XIX.

15Fig. 15 - Paramento interior da muralha no lado poente, com uma bombardeira e as fendas verticais provocadas pelo abalo sismico de 1755.

 

Fase III. Aquartelamento militar posterior ao sismo de 1755. – A esta fase correspondem várias campanhas de remodelação e ampliação, que passaram pela abertura e ou encerramento de portas e janelas, detectadas pelas observações parietais.
Assim, no século XVIII e início do século XIX, constroem-se os edifícios adossados ao sector NE da muralha do baluarte. No decorrer do século XIX há uma grande preocupação por parte dos engenheiros militares em apresentar novas propostas para ampliação das edificações no interior do baluarte, algumas das quais muito arrojadas, que acabaram por ficar apenas em projecto. O edifício da cozinha, foi construído no século XVIII (momento pós sismo), o corpo alongado a oeste e os edifícios no topo sul do baluarte foram construídos já no século XX.

Ilustração fotográfica de Rosa Nunes;
Desenho arqueológico de Susana Duarte e Júlio Costa;
Cartografia do Gabinete dos Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar e gravura do livro de “Viagens de Cosme de Médicis por Espanha y Portugal”, 1668-1669.

Referências:
PERES CLARO, R. (1957) – Setúbal no século XVIII. As informações paroquiais de 1758. Setúbal: Tipografia Rápida.
QUINTAS, M. C. (2003) – Porto de Setúbal: um actor de desenvolvimento. Setúbal: APSS.